O cabelo mais liso.

esther esperança
18 min readApr 5, 2023

--

Prólogo

Cá entre nós, não houve cachos no verão de 2001. Na época pensamos que era porque não era bonito. Outros olhos e muito menos dor nos teriam provado que o problema não era o cabelo, nossas sementes e raízes não haviam sido plantadas erradas. Só estavam numa terra infértil, ou melhor, cresciam em uma época improdutiva.

3B

Anos 2000 e polêmicas.

As tendências ressurgem a cada 20 anos. E o “ciclo dos 20 anos” pode ser visto como uma certeza diante da volta da estética Y2K (Year Two Thousand, em tradução livre: “Anos 2000”) e das tendências usadas no início do milênio.

Dentre todos os fatores, a nostalgia foi determinante para a retomada intensa das roupas metalizadas, silhuetas justas e expostas, minissaias e calças largas em 2020. A estética dos Anos 2000 compõe uma macrotendência repaginada por uma nova geração: mesmo que não conheçam totalmente dos ícones da cultura pop dos anos 2000, a Geração Z (os nascidos entre 1995–2010), nativa da Internet, procura se adaptar às tendências trazidas e ajustá-las para serem coerentes com o presente.

“Nós não nos víamos na mídia: seja nas novelas, jornais e revistas, o nosso cabelo sempre era escondido e mascarado para não nos denunciar.” Aponta Gleisi Souza, de 31 anos.

Edição nº 1021 da revista Capricho, em junho de 2007. Na matéria, é mostrado e valorizado todos os tipos de cabelo, exceto o crespo.
Atualmente, o mercado reconhece seis tipos de curvatura a partir do cacho 3A. (Imagem: Reprodução I Salon Line).

Se uma tendência é uma inclinação natural que direciona alguém a se mover em direção a algo, é também uma forma do mercado se organizar: analisando quem faz moda e quem a usa; separando o comercial do conceitual; criando a temática de cada coleção e segmentando seu público-alvo a partir de peças e estilos de vida.

Na Era da Informação, assim como a moda dos anos 1970 influenciou a produção do estilo da década de 90, um ciclo influencia o outro, a moda e a roupagem influenciam na beleza estética, assim como a representatividade — ou a falta dela — influenciam um comportamento. Por sua vez, moda significa um conjunto de opiniões, gostos, assim como modos de agir, viver e sentir coletivos.

Quando falamos dos Anos 2000, é impossível não pensar nas calças de cintura baixa. E quando pensamos nelas, é difícil não falar do culto à magreza e ao size 0 (o “tamanho 0”). Ao colocamos um comportamento como uma tendência, devemos nos preparar para o que será colhido: no início do milênio, quando os corpos magros eram os únicos vistos nas passarelas e valorizados nas modelagens produzidas, a magreza se tornou uma tendência e sua consequência foi o adoecimento de modelos pelo tamanho inalcançável.

Ainda assim, mesmo após a onda body positive, que influenciou comportamentos e o mercado, 20 anos depois o cós estreito retorna, o que pode parecer frustrante e até regresso para alguns.

Semelhantemente, observamos no mundo da beleza o retorno do alisamento dos fios cacheados e crespos com a força estética Y2K, que, por anos (antes mesmo de ser nomeada assim), apresentou a imagem da mulher ideal como magra e de cabelo liso.

3C

Cabelo pode ser uma tendência?

Na década de 1960 foi, mas nada que permanecesse a longo prazo. Ainda que breve, o cabelo crespo direcionou o movimento negro para algum lugar de reconhecimento e ascensão. Entretanto, o cabelo era mais do que estética, era um jeito de sobreviver ao racismo se adaptando ao que era imposto na época.

Interessante é ver como desde muito antes o cabelo esteve crespo esteve relacionado ao poder: assumir o black power, um símbolo de resistência, era lutar contra a imposição de uma padronização, assumindo sua identidade étnica cultural. Pensando nisso, os Panteras Negras, na década de 1960, o movimento Soul e o movimento naturalista, tinham como pauta a valorização da beleza negra e do cabelo afro, incentivando que os procedimentos que minimizassem os traços africanos fossem parados.

Entretanto, era difícil ver algo além do cabelo linear: mesmo com a potência desses movimentos, muito tempo levou para a mídia dar visibilidade a outros fios. Ora, o que vemos reflete na forma como nos enxergamos e percebemos o mundo, e é fato que as pessoas querem se identificar com o que consomem. É isto — a representatividade nos conjuntos midiáticos — o que torna os romances tão cativantes. O empoderamento é também estética, mas sobretudo é a busca por autonomia e protagonismo no desenvolvimento de novas narrativas.

“Se ela era bonita — e se havia uma coisa em que acreditar era que ela era — então nós não éramos. E o que é que isso significava? Éramos inferiores. Mais simpáticas, mais inteligentes, mas, ainda assim, inferiores. Bonecas podíamos destruir, mas não podíamos destruir a voz açucarada de pais e tias, a obediência nos olhos dos nossos colegas, o brilho escorregadio nos olhos dos nossos professores quando encontravam as Maureen Peals do mundo. […] E o tempo todo sabíamos que Maureen Peal não era o Inimigo e não merecia ódio tão intenso. A Coisa a temer era a Coisa que tornava bonita a ela e não a nós.” (Trecho de “O Olho mais Azul”, de Toni Morrison).

4A

Representatividade e rejeição.

Seu cabelo agora é um loiro que se enrola entre as curvaturas 3A-3C,mas já foi raspado, castanho e trançado diversas vezes. Leticia Damasceno tem 27 anos, é repórter e produtora na TV Integração, afiliada da Rede Globo, e apresentadora do quadro “Fala Comunidade”. No dia anterior à entrevista, um ônibus caiu de uma ponte na BR-116, deixando 4 mortos e 29 feridos, em Além Paraíba; como estava na redação, sua agenda estava apertada e a entrevista teve de ser feita online, pela praticidade.

E foi também a “praticidade” que levou Leticia a alisar o cabelo aos 10 anos. Sua única referência de cabelo natural em sua infância e adolescência foi a sua mãe, e mesmo assim, ela não queria ser como a mãe:

“Eu não queria ser uma mulher branca, mas queria ser aceita do jeito que elas são. Querendo ou não, elas são aceitas com mais facilidade”, aponta. “Foi um processo muito difícil nessa época: no ensino fundamental e médio, não me lembro de ninguém com um ‘blackzão’, nessa fase, não me lembro de ninguém especifico.”

De fato, poucas foram as jornalistas negras presentes na TV entre 1990–2010: Glória Maria, Zileide Silva, Maju Coutinho e muitas outras tiveram o seu impacto, mas sempre foi algo sutil e controlado. Sem sombra de dúvidas, marcante, porém ainda regulado, nada que marque a infância de uma menina preta.

Por mais que fosse uma amante dos cachos, Letícia alisava com frequência o próprio cabelo, sendo refém da escova progressiva e anulada pelo medo da solidão, pela preocupação de agradar, pela falta de empoderamento, de uma rede de apoio baseada na sororidade. Isso mudou quando, em agosto de 2019, ela concretiza a transição capilar com o Big Chop (o “grande corte”), raspa a cabeça para então tirar os fios alisados pelo procedimento químico.

Diferente do que esperava, conseguiu encontrar uma rede de apoio com os colegas de trabalho e da faculdade, onde de fato conseguiu se encontrar e poder ser quem era. Sendo, segundo ela, também uma pessoa “apegada a processos”, a jornalista se agarra a eles para continuar carregando essa bandeira atualmente para mostrar às mais novas que não se deve aceitar o silêncio ou qualquer tipo de definição.

“Só eu sei como foi chegar no primeiro dia no trabalho com o cabelo diferente. Antes só um tipo de cabelo aparecia na TV, e as pessoas se importam com isso, te tratam diferente por causa disso. Ter passado por isso me mostrou que sou além do que as pessoas podem falar. A Letícia é além do cabelo liso, e também é além do cabelo cacheado. Eu sou a partir disso aqui, e é uma conexão criada comigo mesma, e eu acho isso fundamental.”

É fácil estranhar com esse tipo de relato quando não se vive algo tão intenso por algo tão trivial quanto um fio de cabelo. Entretanto, antes de ser um sinalizador — como veremos adiante — , o cabelo é um reflexo de como estamos por dentro. E quando se enfrenta o externo diariamente e se adere a ele num processo de autocontenção, poder se encontrar e saber que é possível ser além, é, de fato, revelador. Porque você percebe que esteve por muito tempo carregando um fardo pesado demais: mensurar-se o tempo todo para ser aceita, não gostar de si e o esforço para ser escolhida, além de envolver o comportamento, envolve também a estética. Se você não é totalmente rejeitada, o que resta é ser parcialmente aceita, adequar-se a uma posição de oferta e desvalorização já estabelecida desde os primeiros anos da América.

Passar, então, pela transição capilar é uma forma de assumir a sua identidade e ancestralidade, trilhar uma jornada de autoconhecimento e valorizar a natureza feminina negra. Por isso um fio de cabelo importa tanto assim.

Letícia continua:

“Parece um simples corte de cabelo, mas você vira o centro da sua vida e foi ali que eu me conheci. Você cria um sentimento com você que você não tinha antes, porque você se agarra a si enquanto se despede da opinião dos outros; e quando isso acontece, você percebe que nada te para mais. E eu quero passar isso para as mais novas: que o tempo começou, que, se lá atrás não foi possível, hoje é. Estamos aqui para fazer por elas, começando por nós.”

Fotos da jornalista com seu cabelo em diferentes fases. (Imagem: Reprodução I Instagram).

E os frutos de um processo tão íntimo são vistos na vida profissional: apresentando o “Fala Comunidade”, Letícia trabalha e fala de uma realidade que também é sua.

“Vejo hoje as pessoas, as crianças principalmente, se identificando comigo. Então, sei que o meu cabelo não foi só uma afirmação para mim, também serviu para outras pessoas, não só na frente da câmera, mas todos os dias”

A ausência de ícones com quem se identificasse não foi determinante para a trajetória de Leticia e, se nos anos 2000 a nostalgia é composta de uma memória branca, magra e lisa, hoje ela pode se identificar sendo representação para crianças de sua comunidade.

Letícia apresentando o “Fala Comunidade” e participando da cobertura do Carnaval de 2023, em Juiz de Fora. (Imagem: Reprodução I Instagram).

4B

Alisamento x Relaxamento: uma evolução para retornar à origem.

Em um bairro qualquer de uma cidade qualquer, você vai encontrar ali um pequeno salão de beleza. Não é nada muito caro ou extravagante, ou até pode ser, mas sua essência é simples: se antes era um quartinho no térreo para guardar carros, hoje ele é usado para cuidar de cabelos. Ali, nos dias de sábado — geralmente, até às 18h, pois todo mundo tem compromisso depois das 19h — você vai encontrar histórias amorosas, brigas de trabalho, marocas sobre a vida dos vizinhos e todo o tipo de conversa de um final de semana.

Mas, antes mesmo de você entrar nesse salão, na porta você já consegue sentir um cheiro adocicado e uma leve coceira no início da garganta, com uma também leve ardência nos olhos e uma fumaça que sai no contato do cabelo com a piastra. Formol.

Nesses salões, a maioria das clientes são mulheres pretas e a faixa etária é ampla, de 10 a 60 anos. A química capilar é um assunto amplo, cheio de fórmulas e histórias que estão se transformando até hoje. Nessa reportagem, preferi destacar dois processos em específico, o relaxamento e o alisamento, mais especificamente a escova progressiva, os dois tratamentos químicos mais conhecidos dos anos 2000 que marcaram a vida de muitas meninas e mulheres.

O alisamento nunca foi nada saudável e entre escolher a saúde e a folga da pressão estética, compromete-se a saúde.

Pensemos em um vaso de plantas. Nele, a terra é o couro cabeludo, e para o fruto nascer forte, a terra precisa estar fértil. Quando um tratamento alcalino como o relaxamento é aplicado no couro cabeludo, ele pode causar queimaduras, instabilidade na parte lipídica do couro cabeludo e abrir a estrutura do cabelo, sua principal função. Com um pH entre 10 e 11, é como se ele esburacasse a terra, a escancarando e tirando da planta seus principais nutrientes. O ideal é que o relaxamento seja aplicado somente na fibra capilar, a fim de linearizar o fio, contanto que este esteja preparado para receber a química e suportar o processo a partir de uma preparação específica. Assim o cabelo continua cacheado, porém não retém tudo o que é colocado de nutrientes, que se esvaem pela fibra, que não está preparada para segurar o que foi aplicado.

Se o relaxamento abre e revira a terra, a escova progressiva a sufoca. Diferente do relaxamento, que mascara o cabelo e abaixa o volume, ela é feita para alisar, por isso ela fecha toda a estrutura do fio. Porém, mesmo sendo uma química ácida, a emoliência no cabelo “progressivado” é um pouco maior porque a cutícula está lubrificada.

Em síntese, ambos processos estão em lados opostos e ambos são prejudiciais, principalmente quando mal aplicados.

Se existe erro na aplicação é porque o relaxamento não é para o couro, onde todos depositavam a química. Ele é para a fibra e, se você se atentar, percebe que o relaxamento não veio para alisar, mas para amaciar a fibra. Porém, esse erro de aplicação não foi ensinado para os profissionais brasileiros”, afirma Gleici Souza, cabeleireira especializada em cachos.

O movimento naturalista, de adesão aos cachos no Brasil, começou em 2009 acompanhado do relaxamento, como uma forma de amaciar e diminuir o volume do cabelo cacheado. Parece contraditório um movimento natural começar com a onda do relaxamento, mas era a forma mais acessível de maquiar o cabelo crespo sem se distanciar de sua origem. Poderia até não ser a melhor escolha, mas era melhor do que aquela lisamente imposta.

E a Internet se relaciona com o movimento, pois até hoje o lapida por meio da informação. Youtubers, influencers e profissionais, como Rayza Nicácio, Ana Lídia Lopes e Zica Assis, expert em cachos do Beleza Natural, iam às redes sociais, seja para divulgar o seu trabalho ou compartilhar a mudança no seu cabelo. E, na transição capilar, no autoconhecimento, o acesso à informação é essencial para entender o próximo passo e poder decidir com convicção.

“Muitas meninas, até chegarem ao natural, vão passar pelo relaxamento porque precisam se adaptar ao volume, à curvatura e, na grande maioria dos casos que vejo em meu salão com meninas naturais, elas não saíram do liso diretamente para o natural.”

Poucos são os profissionais devidamente capacitados para a aplicação da química, muitos começam a carreira nesses pequenos salões de bairro, mas esse é o principal cenário do alisamento no Brasil. Como muitas outras, o relaxamento e alisamento foram importados para cá pela indústria, que evita expor as negativas de seus produtos. Ainda segundo a especialista:

“Em uma química, não podemos tirar os componentes de um produto e os fatores que ele causa, mas existem técnicas que não nos foram passadas porque a química não foi produzida aqui. O que veio para o Brasil foi só um resultado, não foi um caminho para percorrermos e aprendermos. Então, passávamos a química adoidadas na cabeça das meninas sem proteger o couro cabeludo, sem fazer anamnese do fio, sem entender como aquele cabelo é sustentado. Só nos importamos com o resultado, e não com o caminho. […] E não abríamos mão até porque não era legal para a indústria que você soubesse dos danos, e daí vinha o incentivo de usarmos uns relaxamentos de amônia, guanidina em trocas de sódio, para então usarmos as químicas mais ácidas que eram as progressivas. Sem saber, fizemos um combo da destruição: relaxávamos e fazíamos química ácida ao mesmo tempo.”

Em resumo: não existe mutação do cabelo sem química, o que é natural não é modificado na sua estrutura.

Mesmo que a técnica para um relaxamento/alisamento não fosse de conhecimento de todos, esses processos, ainda que não soubessem, impulsionaram o movimento naturalista, que teve o seu ápice durante a pandemia de COVID-19. Embora os salões fossem em direção oposta, sem perceber, estávamos sendo preparados para retornar aos fios naturais.

4C

A certeza de ter para onde voltar.

Gleici Souza, carinhosamente chamada por muitas de Glei, tem 31 anos e é a expert em cachos que falou acima. Seu salão fica na rua Batista de Oliveira, no centro de Juiz de Fora (MG). Na manhã da entrevista, debaixo do sol de fevereiro, confundi Glei com outra pessoa, perplexa ao ver seu cabelo até então longo e preto, descolorido e raspado. Hoje, no espaço de beleza que carrega o seu nome, a cabeleireira acolhe mulheres e dores, por meio de um atendimento afetivo que busca entender o cabelo e a vida de cada cliente. Porém, foi só no final de 2019 e início de 2020, que posicionou o seu salão voltado para cabelos cacheados e crespos.

Ela iniciou sua carreira como auxiliar em um salão de beleza, trabalhando com cabelos quimicamente tratados e mulheres pretas como seu público-alvo.

“No primeiro instante, não era nem para se sentirem bonitas, mas para serem aceitas. Independente se você gostasse ou não do cabelo químico, você teria que fazer porque chegaria um nível na sua vida em que você se sentiria muito solitária socialmente. Então venho dessa era, dessa cultura do cabelo liso, onde a obrigatoriedade de fazer a química era algo já estabelecido, e sem nenhuma outra alternativa. Fiquei nesse ramo durante dez anos da minha vida.”

Com todo esse tempo de carreira, chegando a fazer mais de cinquenta alisamentos por dia, Glei se orgulha especialmente de uma coisa: não ter aplicado química em cabelo infantil. Ainda assim, não importava a idade: o cabelo continuava sendo um sinalizador de que você está fora do padrão, por isso tantas meninas já novas pediam a outras cabeleireiras pelo alisamento.

Tal padrão está estritamente ligado ao Pacto da Branquitude, herança de um país marcado pela escravidão. Sendo o Brasil um país miscigenado, subentende-se que qualquer pessoa com cabelo cacheado deriva do povo negro, porém não acontece necessariamente dessa forma. Independentemente da forma, a história não nega: culturalmente o Brasil sempre repeliu o que não é branco, estamos desde cedo tentando sair da cultura negra, aceitar e impor o padrão da branquitude.

“A mulher negra tinha que se encaixar, ela tinha que se moldar e caber nessa forma e o cabelo era um sinalizador de que ela não estava naquele padrão. Então ela se sentia na obrigação de alisar o cabelo. Porque o corpo poderia ser parecido, a boca a gente dava um jeito, a maquiagem esconde alguma coisa, mas se a sua raiz aparecesse, era um sinalizador muito alto de que você não fazia parte do que era aceito na época”, pontua Gleici. “Por isso, nesse período, eu também aprendi muito a lidar com a questão emocional da mulher, porque ela já vem de muitos anos sofrendo mutações emocionais, coisas que não tem como a gente separar, né?”

Ela também ouviu de perto todas as negativas relacionadas ao cabelo natural: volume, forma, e praticidade. E, se sente que na época em que começara era o ápice do relaxamento, concorda também que em 2020 foi quando a onda do cabelo natural e a transição capilar se consolidaram na Internet e vida de muitas mulheres:

“Falamos que o renascimento do cabelo natural veio com a pandemia porque precisava de um motivo drástico que fizessem as mulheres pararem de alisar. Então, teve que acontecer algo muito maior para eu poder escolher ser quem eu sou. Só escolhemos ser quem somos devido a uma regra [isolamento social] que nos impossibilitava de fazer aquilo que precisávamos fazer para sermos aceitas. Quando veio a pandemia, não tinha o que fazer: você tinha que estar em casa. E quando estávamos imersas no mundo digital, as informações vinham com as dúvidas: o que vou fazer no meu cabelo? O que é transição capilar? Se eu não tinha como fazer química, eu não tinha salão aberto, então eu ia lidar com o que eu tinha: o meu cabelo.”

Trecho do “Dossiê BrandLab: A Revolução dos Cachos”, feito pelo Google BrandLab em 2017. Confira o dossiê completo aqui.

“Houve uma descoberta no primeiro trimestre da pandemia. Mas, quando falamos que começou em 2020, desconsideramos os detalhes e um contexto que houve para iniciar a transição. Dentro desse nicho, eu comecei a atender um público maior no final de 2019, eu não sabia ao certo o que fazer, mas como já tinha contato com cabelos relaxados, o que eu sabia fazer adaptei para o cabelo natural. A cacheada só conversa com a cacheada porque ela precisa de confiança. É como se formássemos uma bolha protetora, uma comunidade…”

Como a escritora e teórica feminista bell hooks bem aponta, o amor tem potencial curativo e de mudança. O amor não se trata de redução a relacionamentos afetivos-sexuais românticos, mas de adição e amplitude de relações e afetos, como o amor a si e à comunidade. Ele é capaz de lançar fora todo o medo.

Gleisi Souza, expert em curvatura. (Imagem: Acervo pessoal).

Esta não é uma reportagem para te persuadir a usar seu cabelo natural. Você não é obrigada a assumir o seu cabelo por parecer ser a coisa certa a se fazer. Contudo, é mais que importante refletir sobre as nossas motivações e como o mercado e tendências agem por trás de uma simples moda, essa é a intenção desta reportagem.

Hoje Glei se identifica com a leveza do cabelo raspado, mas sabe que pode variar e mudar o quanto quiser, e por isso não se preocupa em se justificar:

“Não podemos abafar as pessoas que querem ter voz ao não se identificarem com o natural e pedir para que elas permaneçam insatisfeitas. É o mesmo que sofremos no passado. E não é só cabelo, tem a ver com uma história de vida, movimento de rotina; então às vezes prefiro dizer que há como você ter seu cabelo natural em todas as fases da sua vida, mas eu não posso te garantir que, em todas essas fases, você será a mesma e vai querer estar natural. Quando dou uma possibilidade, você arrisca e, se não gostar, continua livre. Porque já se conhece e ganha uma casa. O cabelo é uma casa, que ninguém tira de você, ninguém te tira o que é seu. Tudo que você fizer no seu cabelo vai te voltar a quem você é. O cabelo natural é uma certeza e ele sempre vai crescer. Você sabe quem você é, é uma casa que você tem, então qual é o problema de alugar outras casas? Você pode escolher sair e voltar para casa, porque você sabe o lugar que você pertence. O cabelo natural é versátil, enquanto você o tiver, você sempre terá a escolha de estar natural, mas eu não posso te impor a isso, pois nada me garante que em ‘x’ fase você ainda estará feliz com ele.

Ao final, terminamos a entrevista com a opinião de Glei enquanto especialista:

“Acredito que essa moda de alisamento é uma fase assim como a que aconteceu nos anos 60, anos 80, em que a era soul foi marcada pelo cabelo natural e até mulheres lisas faziam permanente. Quando se estuda a comunidade você entende que a era soul foi derrubada pela moda, porque a moda antes era diferente. Mas a indústria também não pode ser contraditória: ela não vai colocar diversidade para depois tirar. Acredito que somos moldados pelo conjunto midiático e cada vez mais temos visto representatividade. Quando temos pessoas diferentes, o pensamento também é diferente. Existia uma comunidade antes da pandemia e existe um legado pós-pandemia, uma onda de positividade através de uma ação, o liso pode estar com muita força, mas essas meninas que estão alisando mudaram e estão com outra cabeça, não vão impor uma ditadura. Acredito que não é um movimento por conta da massificação da indústria, mas por vontade. A indústria mudou,e você acha que ela vai voltar com um padrão de 20 anos atrás? Hoje a nossa mídia é o que a gente escolhe, por isso uma tendência não terá um poder tão grande. “

Posfácio

Lembro-me agora de uma conversa que tive durante uma pequena viagem em 2018 com uma menina que devia ter entre 9–11 e a quem chamarei de Emília. Assim, como Frieda, Claudia e Pecola, personagens de Toni Morrison em “O Olho Mais Azul”, Emília tinha suas tranças curtas apelidadas de “cabelo de parafuso” na escola e queria ser aceita, mas não deixava de mostrar a sua frustração e revolta em um comportamento considerado rebelde e agressivo. Mas não há uma fórmula para conseguir a aceitação alheia, ou você tem, ou você não tem. E aceitação não é algo que você só pede, como se fossem balas em uma mercearia, é algo que você conquista, e talvez você nem conquiste, mas consegue algo próximo a isso com duas opções bem limitadas: ou você entra na brincadeira e ri ou deixa a sua raiva te colocar contra ela.

Claudia e Frieda sentiam a rejeição, que as enraivecia. Emília sentia raiva, solidão e o julgamento de não ter um comportamento gentil. Eu também senti e praguejei. Porque xingar é melhor do que o silêncio, que é melhor do que pedir por compreensão e afeto.

“Raiva é melhor. A raiva dá a sensação de existir. É uma realidade, uma presença. Uma consciência de valor. Uma ardência deliciosa.”

É uma forma de você assumir o controle e estar um passo à frente da rejeição.

Mesmo com raiva, continuamos lutando para que as meninas de hoje não a sintam, mas que elas sintam conforto e representatividade ao verem uma mulher preta na TV, ou segurança e inspiração ao cortarem o cabelo. Queremos que elas tenham o que não tivemos no início do milênio: escolha, identidade, liberdade, referências de estilo. Sentimos e queremos isso porque sabemos que somos além do que um corte de cabelo, mas a nossa jornada começou com ele, somos a partir dele. Por isso, conseguimos nos amar: sabemos que temos para onde voltar.

--

--